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VIAJANDO À SERRA DOS PERIGOSOS: Memórias da guerrilha de Pariconha (AL), nos anos 1960



Antônio Fernando de Araújo Sá

Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe

Doutor em História pela Universidade de Brasília


O gosto pelo movimento e o desejo pela mobilidade, herança familiar de meu avô e de meu pai, têm encontrado muitos percalços nesses tempos pandêmicos. Depois de longo período de reclusão, pude restabelecer um diálogo com a poética geográfica dos sertões, na cidade de Pariconha, em Alagoas.

Ao conhecer a tentativa de organização da guerrilha nessa cidade, nos anos 1960, no Campus Sertão da Universidade Federal de Alagoas, em Delmiro Gouveia (AL), o tema me surpreendeu pelos poucos registros de memória dessa experiência revolucionária, organizada pela Ação Popular (AP).

Na biblioteca da UFAL Sertão, encontrei apenas o livro de Amaro Hélio Leite da Silva, que narrou a experiência de resistência indígena e sindical à ditadura civil-militar nos sertões de Alagoas, principalmente, a partir dos testemunhos orais na Serra dos Perigosos. O pioneirismo do livro reside na reflexão sobre o contato dos índios Geripankó com militantes da AP, no contexto do processo de proletarização dessa etnia e da criação do sindicato em Água Branca, em 1963, por incentivo do Movimento de Educação de Base (MEB), que desenvolvia o método Paulo Freire de alfabetização, e do Serviço de Orientação Religiosa de Alagoas (SORAL).

A sindicalização dos trabalhadores rurais era vista como uma forma de conter o avanço das Ligas Camponesas na região. Entretanto, a luta pela terra foi o ponto de encontro entre a luta indígena e a sindical, levando “alguns índios de Pariconha ao sindicato e ao encontro com o movimento revolucionário da AP”. Portanto, o “sindicato vai ser o grande elo de integração entre etnia, classe e revolução” (SILVA, 2007, p. 110 e 112).

Posteriormente, o livro de memórias de Aldo Arantes, Alma em Fogo, relatou as ações da Ação Popular junto ao movimento operário, em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, além da atuação junto aos camponeses na zona da mata pernambucana, no Vale do Pindaré, no Maranhão, sob a liderança de Manoel da Conceição, e, em Pariconha, onde atuou, clandestinamente, na organização de uma Escola Político-Militar de Quadros Camponeses, por conta do trabalho desenvolvido sob a liderança de José Gomes Novaes, que fora presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais na cidade.

A opção da organização política de integração à produção demonstrava a influência da Revolução Cultural chinesa, ainda que as ideias da Revolução Cubana se fizessem presente em parte da militância. Entre os participantes, destacaram-se, além do citado José Novaes, Josué Correia, presidente do Sindicato, José Correia, presidente da Cooperativa, entre outros (ARANTES, 2013, p.150 e 157).

Ainda que tímida, a participação da AP na organização dos trabalhadores rurais demonstrava a relevância da luta camponesa na resistência política e armada contra a ditadura civil-militar, parcialmente, esquecida pela narrativa historiográfica.

Em companhia de Edvaldo Nascimento, professor-pesquisador de Delmiro Gouveia e militante do PC do B, busquei rastros dessa memória na região, contatando, no início de 2019, José Correia, Josué Correia e o Padre Rosevaldo dos Santos, que relataram suas experiências daquele momento histórico. Os primeiros relataram a guerrilha na Serra dos Perigosos no final dos anos 1960 e a emancipação da cidade de Pariconha do município de Água Branca (AL). Já o último, como ex-pároco em Água Branca, relembrou o papel do Monsenhor Sebastião Alves Bezerra na organização do sindicato dos trabalhadores rurais em Água Branca (AL).

Após certo arrefecimento da pandemia, pude retornar, na companhia do citado pesquisador, no último final de semana, dia 17 de outubro de 2021, à Pariconha, agora para conversar com Jaime Correia de Souza e Arlindo Alves Feitosa, conhecido como Arlindo Perigoso. Nas entrevistas, filmadas partes na casa do primeiro e na Serra do Pajeú, o orgulho de ter participado da resistência à ditadura pontifica ambas as falas. Os armamentos eram construídos pelos próprios militantes, sendo que o treinamento era realizado com armas de pouco significado militar (ARANTES, 2013: p. 156)

O testemunho de Jaime Correia de Souza expressou certa contrariedade com relação ao menoscabo dessa experiência, bem como o esquecimento dos combatentes do sertão, preteridos pela política de reparação do Estado brasileiro e mesmo da historiografia brasileira. Sobre este último aspecto, o excelente livro de Marcelo Ridenti, O Fantasma da Revolução Brasileira (1993: p. 222-223), relata as ações da AP no movimento camponês, a partir do acervo do Brasil Nunca Mais, não mencionando as prisões dos irmãos Correia, de José Novaes e outros militantes, em 1968. Talvez isso possa ser explicado pela inexistência de documentação oficial sobre as prisões na cidade de Água Branca (AL), apesar da violência das torturas.

Contra todos os esquecimentos, os testemunhos de Jaime Correia e Arlindo Perigoso revelaram a dimensão de comunidade existente, seja por se tratarem, muitas vezes, de parentes e familiares, que participaram da luta contra a ditadura, mas também a solidariedade na divisão das tarefas e as decisões coletivas nas assembleias comunitárias.

Foram identificados lugares de memória na Serra do Pajeú, cujos marcos foram o muro de pedra, que, segundo Aldo Arantes, era uma forma de dar um “ar de normalidade no sítio do treinamento” (ARANTES, 2013: p. 157), mas que, nas lembranças de Jaime Correia, era um lugar para enfrentar aqueles que poderiam invadir o local. Da casa de farinha, restam somente as pedras do alicerce, cobertas de mato, mas que foi o detonador de lembranças do cotidiano daquela época por parte dos testemunhos. Por fim, o barreiro construído no fundo da casa era uma necessidade que, infelizmente, mantém-se nos dias de hoje, pois ainda não há água encanada.

Essas locações impulsionaram memórias que mostram a importância da história local para se compreender a própria história nacional, pois, não sendo reflexo da história geral, pode guardar particularidades que possibilitam a revisão das generalizações oriundas de uma história que se quer nacional. No nosso caso, ao focar na experiência da guerrilha de Pariconha, permitiu-nos identificar características particulares das comunidades das serras, especialmente associadas à resistência como fator de identidade local, como indígenas ou revolucionários, evocando um universo de experiências materiais dos homens e mulheres, a partir de “diferentes itens do cotidiano e evidências orais” (SILVA, 1992: p. 61). Desse modo, “a história local tem se preocupado com as circunstâncias cotidianas, com o fragmento, o inusitado, o particular e o específico” (RODRIGUES, 1996, p. 2).

Essa perspectiva se fez presente no inventário estabelecido por nós nas entrevistas com o padre Rosevaldo Caldeira e com os remanescentes da guerrilha, como José Correia de Souza, Josué Correia de Souza, Jaime Correia de Souza e Arlindo Perigoso, quando relataram suas experiências durante o período ditatorial, em que a resistência, em Pariconha (AL), ultrapassou os marcos políticos e administrativos com a união dos trabalhadores rurais e indígenas da etnia Geripankó com os militantes da Ação Popular (AP), no final dos anos 1960.

Como desdobramento dessa experiência, “alguns índios perigosos da serra entrarão no processo de luta pelo reconhecimento étnico e pela demarcação de suas terras” (SILVA, 2007, p. 163). A fusão entre luta étnica, sindical e partidária pode ser exemplificada tanto na adesão de Arlindo Perigoso e outros ao Partido Comunista do Brasil (PC do B), quanto na liderança atual de Jaime Correia de Souza na Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).

Essas entrevistas são exemplares para se pensar a transregionalização, na medida em que nos convidou a refletir sobre o regional como face de identidades, quando a migração para São Paulo e o retorno para Pariconha pode evidenciar que as identidades organizam as dimensões do cotidiano, atuando “em múltiplas frentes de sobrevivência, sem um destino político pré-estabelecido” (SILVA, 1992, p. 64).

Por fim, essa viagem de campo é reveladora da importância da História Local como forma de retirar “do obscurantismo aspectos relevantes para a compreensão dos processos históricos nacionais”, trabalhando grupos marginais e “fatos miúdos” do cotidiano dos sertões das Alagoas (RODRIGUES, 1996: p. 2), pois esses acontecimentos não podem ser compreendidos sem o contexto mais amplo, tanto nacional, quanto internacional, como foi o caso da esquecida guerrilha de Pariconha.


BIBLIOGRAFIA


ARANTES, Aldo. Alma em fogo: Memórias de um militante político. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2013.

RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Ed. UNESP, 1993 (Prismas).

RODRIGUES, Jane de Fátima Silva. História e memória local: desafios e perspectivas. Boletim CDHIS. Uberlândia, ano 9, n. 16, 2º. Semestre 1996, p. 2.

SILVA, Amaro Hélio Leite da. Serra dos Perigosos: guerrilha e índio no sertão de Alagoas. Maceió: EdUFAL, 2007.

SILVA, Marcos. A História e seus limites. História & Perspectivas. Uberlândia, n. 6, jan./jul. 1992, p. 59-68.



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