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Foto do escritorObs. da Democracia UFS

Ainda precisamos (e muito) falar sobre tortura

Andréa Depieri de Albuquerque Reginato


A liberação de gravações das sessões do Superior Tribunal Militar (STM), ocorridas durante o período da ditadura militar brasileira, permite, ainda que em pequenos trechos editados, a compreensão imediata, audível, daquilo que há muito, comprovadamente, já se sabia: o estado brasileiro - sistematicamente - torturou não apenas os que se opunham ao governo militar, como também aqueles que circunstancialmente estivessem próximos a estes.

O primeiro e grandioso esforço de comprovação da prática de tortura no Brasil durante a ditadura militar se deu com o Projeto de Pesquisa Brasil Nunca Mais (BNM). A conhecida obra, Brasil Nunca Mais: um relato para a história - prefaciada por Dom Paulo Evaristo Arns -, foi publicada originalmente no ano de 1985 pela Arquidiocese de São Paulo (Editora Vozes). Trata-se de um relato simplificado (chamado de Projeto B), mas não menos contundente, de tudo o que foi apurado em uma cuidadosa pesquisa (Projeto A) realizada a partir de dados extraídos dos autos de processos-crime julgados justamente pelo STM. O livro (Projeto B) publicado sem autoria especificada, trazia à capa apenas o nome de Dom Paulo, responsável pelo prefácio, mas hoje se sabe que o texto foi escrito por Frei Betto e Ricardo Kotscho. A edição americana do livro1 foi traduzida pelo ministro presbiteriano Jaime Wright, cujo irmão, Paulo Wright (uma liderança estudantil que se elegera deputado em Santa Catarina) havia sido torturado e morto pela ditadura. Mais do que tradutor, Jaime Wright foi um dos responsáveis pelo BNM.


A pesquisa (Projeto A) teve início em agosto de 1979 e foi concluída em 19852 . A Arquidiocese de São Paulo assumiu as responsabilidades institucionais. Dom Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright, como religiosos, articularam para que o projeto BNM pudesse acontecer, tornando-se a face pública do projeto, ao passo que as identidades das pessoas envolvidas na coleta e pesquisa permaneceram anônimas para sua própria segurança. O Secretário-Geral do Conselho Mundial de Igrejas à época, Philip Potter, foi fundamental levantando os fundos necessários para que a pesquisa pudesse avançar (Weschler, 1990).


Quando ainda não falávamos de justiça de transição, direito à memória ou de Comissões da Verdade, o BNM cumpriu o papel de registrar e comprovar, a partir de documentos produzidos pelo próprio Estado brasileiro (fontes primárias em sua maioria), quais as dinâmicas de funcionamento dos aparatos repressivos do Estado durante a ditadura militar. O BNM constituiu sua base de dados para a pesquisa fotocopiando a “quase totalidade dos processos que transitaram pela Justiça Militar Brasileira entre abril de 1964 e março de 1979, especialmente aqueles que atingiram a esfera do Superior Tribunal Militar” (BNM, 1985). A coleta e fotocópia dos processos, contou com o trabalho sistemático de advogados que “faziam carga” dos autos, muitos deles sem saber exatamente para qual finalidade; com a ajuda de funcionários públicos que, de forma solidária, contribuíram para a identificação do material de interesse; além de fotocopiadores que trabalhavam praticamente 24 horas por dia de forma que os autos pudessem ser devolvidos rapidamente (Weschler, 1990). Foram copiados 707 processos completos e outros tantos incompletos, num total de mais de um milhão de páginas copiadas e microfilmadas em duplicidade para garantir a segurança da documentação (BNM, 1985), o que significa dizer que o BNM foi produzido a partir dos registros oficiais do próprio regime. Toda a documentação e os registros do BNM, estão organizados e completamente acessíveis no sítio do projeto BNMdigit@l 3


Pereira (2012) levanta a hipótese de que o alto grau de legitimação do regime de exceção no Brasil, acabara por permitir um tipo específico de tratamento judicial relativamente às questões enquadradas como de “segurança nacional”. Uma maior integração entre justiça militar e civil no Brasil teria possibilitado ajustes interinstitucionais, o que permitiu que os julgamentos fossem acompanhados por advogados, bem como pela sociedade civil. Essa especificidade quanto ao funcionamento da Justiça Militar brasileira acabou por produzir inúmeros registros judiciais acerca do funcionamento da repressão no Brasil durante a ditadura. Ainda que os depoimentos dos réus sejam uma importante fonte de informações, não se pode deixar de considerar documentos juntados aos autos e as decisões judiciais em si mesmas, em especial as absolvições decorrentes justamente do reconhecimento de que as provas dos autos eram ilegais, porquanto contaminadas em razão de terem sido obtidas mediante tortura.


A dubiedade, perceptível nos áudios tornados públicos até o momento, permeia a atuação da Justiça Militar durante o período ditadura. Diferente do que se possa imaginar, o início do processo na esfera da Justiça Militar funcionava como um garante relativamente à vida e integridade física do réu. Os desaparecimentos costumavam acontecer nos primeiros momentos da prisão, quando os prisioneiros estavam legalmente submetidos à incomunicabilidade. Assim, iniciado o processo-crime, a custódia do preso tornava-se pública, o que o colocava em relativa segurança. Além disso, de forma recorrente, o STM reconhecia ter havido prática de tortura, com a consequente invalidação das provas e absolvição dos acusados. Ao mesmo tempo, uma vez reconhecida a prática da tortura para os fins imediatos daquele processo-crime, a questão em si permanecia adormecida, sem quaisquer outras consequências.


Não deixa de ser curiosa, senão descabida, a manifestação do atual presidente do STM, Ministro Luis Carlos Gomes Mattos, que decodifica as gravações tornadas públicas como uma investida “contra o Tribunal”, a despeito de ficar claro, em alguns dos áudios disponibilizados, o inconformismo de alguns Ministros do STM frente à sistemática prática de tortura. O conteúdo dos áudios já trazidos a público permitiria, em tese, que o STM fizesse uma defesa institucional, se não dos momentos em que serviu como garante aos cidadãos, ao menos da importância do seu acervo4 para a memória do país. Mas não, quase como em um “ato falho” o Ministro vem a público em defesa das Forças Armadas, se refere à disciplina e à hierarquia para reificar a oposição entre militares e sociedade civil. Mais que isso, classifica a publicidade dada às gravações como “notícia tendeciosa” que deve, portanto, ser ignorada.


Ignorar não é um bom caminho. A falta de respostas ou encaminhamentos diante da prática de tortura é uma das nossas heranças mais autoritárias. Os abusos de toda a sorte no campo da justiça criminal, da tortura ao excesso prazo, passando pela homologação de flagrantes forjados e pela decretação de prisões acobertadas pela generalidade da “ordem pública”, também costumam ser ignorados e raramente as autoridades envolvidas nessas rotinas são responsabilizadas. A começar pelo fato de que o próprio instituto do Habeas Corpus, no Brasil, não estabelece qualquer tipo de consequência para a autoridade coatora nos casos de concessão do writ. Podemos ir mais longe: os relatos de tortura são muitas vezes invisibilizados e não investigados.


Os áudios revelados nessa Páscoa comprovam e reforçam o que já sabíamos pelo menos desde os registros do BNM: a ditadura militar brasileira torturou e matou. Precisamos falar sobre isso à exaustão: porque não superamos a nossa herança autoritária; porque a redemocratização não foi suficiente para acabar com a tortura no Brasil; porque muitos brasileiros nesse momento fazem troça e acham graça na violência de Estado, flertando, abertamente, com a possibilidade de um regime autoritário.



Os áudios disponibilizados agora pelo pesquisador Carlos Fico, correspondentes a julgamentos ocorridos no STM entre os anos de 1975 à 1979, ajudam a completar o quadro já desenhado pelo BNM (e depois pelas Comissões da Verdade), mas mais do que isso trazem a questão para a pauta do dia - e é assim que deve ser. A ativação da memória coletiva, a partir da escuta dos áudios, em um contexto político no qual a apologia à tortura se tornou frequente, é antídoto em defesa da democracia e dos princípios que animam o texto constitucional brasileiro. É preocupante que o STM e as Forças Armadas se sintam incomodados. É importante, é saudável olhar para ditadura para aperfeiçoar a democracia. A memória da nossa crueldade, do nosso desmazelo, precisa ser constantemente reativada, permitindo-nos enfrentar o que se revela. A violência de Estado nunca é bem-vinda.



1Torture in Brazil: A Shocking Report on the Pervasive Use of Torture by Brazilian Military Governments, 1964-1979, Secretly Prepared by the Archiodese of São Paulo


2 O livro-documentário de Lawrence Weschler (1990) conta com detalhes os enormes esforços mobilizados na empreitada de coleta, análise, registro e divulgação das violações da ditadura pelo BNM.


3 http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em 19 abr. 2022


4 O acervo do STM contém inúmeros processos de relevância histórica, a exemplo de julgados que versam sobre temas como a Revolta Tenentista, a Coluna Prestes, o Levante Comunista de 1935, a Segunda Guerra Mundial e a ditadura militar. Grande parte do material está digitalizado. Decisão do Supremo Tribunal Federal, de março de 2017, reafirmou o direito à informação dos registros documentais e fonográficos relativos aos julgamentos ocorridos na década de 1970 no STM, sem exceção.



REFERÊNCIAS


Arquidiocese de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Vozes, 1985.


PEREIRA, Antony. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo, Paz e Terra, 2012.


WESCHLER, Lawrence. Um milagre, um universo: o acerto de contas com os torturadores. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo, Companhia das Letras, 1990



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