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  • Foto do escritorObs. da Democracia UFS

TESTEMUNHOS E NARRATIVAS NA COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE PAULO BARBOSA DE ARAÚJO (SE)

A DEMOCRACIA EM QUESTÃO


Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe



Com todos os percalços da justiça de transição no Brasil, em virtude da política de esquecimento, operada no Brasil, o aumento progressivo do número de atores dedicados aos debates sobre Memória, Verdade e Justiça, na primeira década do século XXI, e o adensamento das conexões entre eles, resultou em projetos de memória, como Memórias Reveladas (2009), sob a coordenação do Arquivo Nacional, e Marcas da Memória (2010-2014), criado e desenvolvido pela Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça. Neles, o “testemunho de vítimas, de sobreviventes, de familiares de mortos e desaparecidos e de militantes políticos contra a ditadura” constituiu-se como eixo central dos acervos disponibilizados. Esses testemunhos trazem consigo “um conhecimento específico, dificilmente auferido fora do depoimento”, cujo implicação vai além da análise histórica, por suas “dimensões jurídicas, políticas, psíquicas e éticas” (ARAÚJO, 2020: p. 30, 16 e 17).


Entre 2003 e 2014, encontramos um ambiente “favorável à rememoração de acontecimentos ligados à ditadura civil-militar e que, muitas vezes, foram esquecidos ou silenciados” (SCHLACHTA, 2017: p.283). É nesse contexto que são instalados e desenvolvidos os trabalhos da Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa de Araújo”, trazendo para a arena pública personagens que rememoraram o seu papel na luta democrática e de resistência aos autoritarismos.

Como afirmado em seu relatório final, um dos principais objetivos era o de olhar “para as graves violações de direitos humanos para entender como as forças de repressão atuavam é uma forma de defender a democracia e construir um futuro melhor para todos nós” (REGINATO e REIS, 2021: p. 25).

No desenvolvimento dos trabalhos da CEV o marco histórico de setembro de 1946 a outubro de 1988 evidenciou continuidades da violência política contra a militância da esquerda comunista que se estenderam do período democrático, entre 1946 e 1964, ao golpe de 1964 e a subsequente consolidação da ditadura empresarial-militar. O que unificava as ações repressivas era o discurso marcadamente anticomunista, que demarcou a cultura política no Brasil, ao longo de todo o século XX, desde a revolução russa de 1917, passando pela insurreição comunista de 1935 até chegar ao golpe civil-militar de 1964 e a ditadura militar (1964-1985) (SILVA e LENTZ, 2018).

O tema da violação aos direitos humanos foi relatado nas narrativas dos testemunhos disponibilizados em audiências públicas da Comissão. Como registrado no relatório final, as “Vítimas da Operação Cajueiro que estavam na plateia deram emocionados depoimentos e reforçaram a importância do aperfeiçoamento constante da democracia” (REGINATO e REIS, 2021: p. 51)


Emblemática foi a fala de Marcélio Bomfim, na audiência pública realizada no auditório do Museu da Gente Sergipana em 21 de março do 2016, quando narrou sua trajetória política na militância comunista, iniciada na crise da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, até os dias atuais, reafirmando sua identidade comunista, de “um carregador de sonhos” na luta por “um mundo de paz, com uma sociedade justa, livre, igualitária, fraterna e, acima de tudo, uma sociedade democrática”. Como apontou Tzvetan Todorov (2002, p. 151), a testemunha refere-se “ao indivíduo que convoca suas lembranças para dar uma forma, portanto um sentido, à sua vida, e constituir assim uma identidade”.


Nesse sentido, sua vida foi narrada como uma história de luta e resistência desde o parto, quando sua mãe, no sertão do São Francisco, no município de Canhoba, ouvia, no mês de maio de 1944, “os canhões do Exército vermelho esmagando o nazismo e o fascismo na Europa”. Segundo ele, “por isso me engajei na luta para defender a liberdade”. Aqui o militante político contestava determinada visão sobre a incompatibilidade entre comunismo e democracia, já que “uma sociedade democrática [é] como primeiro passo para a construção do socialismo que é a antessala da sociedade comunista” (BOMFIM, 2016).


Afonso Nascimento (UFS), em livro publicado sobre a Comissão Estadual da Verdade, afirmou que os “comunistas sergipanos eram aprendizes do totalitarismo que, felizmente, não tiveram sucesso em Sergipe em seu projeto de sociedade totalitária” (NASCIMENTO, 2020: p. 65). Discordo dessa interpretação, pois o ilustre professor esquece da guinada à democracia definida na Declaração de março de 1958, por parte do Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando apostou na opção democrática e pela política de aliança de classes como resposta à decepção das denúncias dos crimes de Josef Stálin por parte de Nikita Kruschev, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em fevereiro de 1956. Essa virada oportunizou a aproximação com setores progressistas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que, sob a liderança de San Tiago Dantas, defendiam as Reformas de Base, em março de 1958 (ALVES FILHO, 2021: p. 34).


Como ato performativo, os testemunhos, realizados no âmbito da Comissão Estadual da Verdade, oferecem não apenas uma “jornada ao passado ou funcionam como prova de eventos ocorridos, mas atuam em sua construção a partir de uma ação no presente e são, desse modo, a mais importante fonte de elaboração do conhecimento sobre esses eventos, mais até do que a própria experiência e a razão” (AVELAR, 2020: p. 214).


Como direito fundamental da cidadania, podemos associar a memória ao processo incessante de consolidação da democracia e do desenvolvimento de uma cultura política de defesa dos direitos humanos. Ao expor “distintas posições, estratégias e propostas que se realizam sobre como manter viva, ou aquietar, a memória do passado recente” (DUSSEL, FINOCCHIO & GOJMAN, 2007, p. 193), essas iniciativas memoriais puderam balizar o enfrentamento à impunidade e a injustiça no passado recente no Brasil.



BIBLIOGRAFIA


ALVES FILHO, Ivan. Os nove de 22. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2021.

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. História Oral e Memória da Ditadura Militar: o papel dos testemunhos. In: GOMES, Castro de Angela (org). História oral e historiografia: Questões sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2020.

AVELAR, Alexandre de Sá. Tempo, memória e testemunho na historiografia recente sobre o período militar: apontamentos críticos. In: BENTIVOGLIO, J., & NASCIMENTO, B. César (orgs.). Escrever História: Historiadores e historiografia brasileira nos séculos XIX e XX. Serra: Editora Milfontes, 2020 (e-book).

BONFIM, Marcélio. Sobre a ditadura militar em Sergipe. Expressão Sergipana. 27/01/2016. Acesso em 06/03/2021. Endereço eletrônico: http://expressaosergipana.com.br/sobre-a-ditadura-militar-em-sergipe/

DUSSEL, Inés, FINOCCHIO, Silvia & GOJMAN, Silvia. Haciendo memoria en el país del nunca más. 2ª. Ed. Buenos Aires: EUDEBA, 2007.

NASCIMENTO, Afonso. Resistência e adesão ao regime militar: Ensaios a partir da Comissão da Verdade de Sergipe. Aracaju: Editora Criação, 2020.

REGINATO, Andrea Depieri de Albuquerque & REIS, Gilson Sérgio Matos (org.). Comissão Estadual da Verdade "Paulo Barbosa de Araújo" (Sergipe - Relatório Final). Aracaju: Editora Diário Oficial do Estado de Sergipe (Edise), 2020.

SCHLACHTA, Marcelo Hansen. Testemunhos em perspectiva: uma análise das narrativas de vítimas da ditadura e a atuação da Comissão Estadual da Verdade no Oeste do Paraná. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 267 ‐ 307. jan./abr. 2017.

SILVA, Thiago Moreira & LENTZ, Rodrigo. O antipetismo como herança do anticomunismo. Nexo Jornal. Acessado em 10 de outubro de 2019. Disponível na internet no endereço eletrônico: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2018/O-antipetismo-como-heran%C3%A7a-do-anticomunismo .

TODOROV, Tzvetan. Memória do Mal, Tentação do Bem: Indagações sobre o século XX. São Paulo: Arx, 2002.



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