Por Tatiana Güenaga Aneas *
Digital: que digital?
Quero começar pelo começo, definindo isso que chamamos com muita tranquilidade de digital. O que é o digital, afinal, e de que digital estamos falando quando falamos do contexto contemporâneo? Certamente não é o mesmo dos anos noventa, das salas de bate-papo hospedadas em sites html. Quando eu era adolescente, depois de terminar as tarefas da escola, perguntava para minha mãe se eu podia "entrar na internet". Qual o sentido desta pergunta nos dias de hoje?
Nenhum sentido, vocês me diriam. Hoje estamos na internet o tempo todo, não precisamos entrar na internet. Mesmo dormindo, com o celular embaixo do travesseiro. Até meados dos anos 2000, havia vida offline. Hoje já não há. Com a popularização dos dispositivos móveis, a conexão toma um caráter de ubiquidade, para usar um termo caro a pesquisadores como André Lemos e Lúcia Santaella. Seja de maneira ativa, enquanto tocamos duas vezes na tela sobre fotos alheias ou compartilhamos memes no grupo da família. Seja de maneira passiva, enquanto nosso dispositivo envia dados sobre por onde andamos e como usamos os aplicativos. Estamos sempre conectados, recebendo e enviando dados.
Temos então que este digital do qual estamos falando se caracteriza 1 - pela ubiquidade (há conexão em muitos lugares) 2 - pela mobilidade (os dispositivos conectados nos acompanham, como uma extensão do nosso corpo). O que nos leva a um estado de hiperconexão, definido por Gomes (2018) como “um estado em que os indivíduos têm sempre à mão um aparelho que geralmente não é desligado nem desconectado da rede”.
Alguns autores, incluindo o próprio Gomes, vão dizer que este conjunto de fatores leva ao fenômeno da digitalização da vida. Os dispositivos conectados à rede são hoje instrumentos para muitas das ações humanas. Usamos mapas e GPS para nos locomover e encontrar caminhos, sistemas para compra e entrega de alimentos e mercadorias, redes sociais digitais para nos comunicar com amigos e familiares, plataformas as mais diversas para nos informar sobre o que acontece no mundo - inclusive no mundo da política. Se pensamos no contexto da pandemia, essa constatação de que a vida hoje acontece em ambiente digital se torna ainda mais evidente.
Uma ilustração para tentar mostrar como a tecnologia digital mudou nossa vida nos últimos 20 anos. A internet comercial chegou no Brasil em 1995, quando eu tinha nove anos. Na época, minha mãe, como muitas mães, me dava uma mesada. Eu costumava gastar tudo em jujuba e revistas de games numa banca que até hoje existe na Av. Centenário, em Salvador. Hoje, meu filho de oito recebe a mesada dele numa conta do Paypal. Tentei dar em dinheiro real, mas percebi que não ia funcionar, porque ele só pensa em comprar Robux, que é a moeda virtual de uma plataforma de jogos, a Roblox, que ele usa para incrementar seu avatar ou conseguir vantagens em partidas. O mundo mudou um bocado, minha gente. Seja para consumir, namorar ou fazer política, a internet não é mais a mesma.
Plataformas digitais
Vamos falar um pouco agora sobre plataformas.
O que diferencia um site dos anos 2000 de uma plataforma em 2020? Em um livro ainda sem tradução, “The Plataform Society” (2008) Van Dijck, Poell e De Wall definem plataforma online como “uma arquitetura digital programável projetada para organizar interações entre usuários - não apenas usuários individuais, mas também entidades corporativas e instituições públicas. Sua engrenagem funciona através da coleta sistemática, processamento algorítmico, circulação e monetização dos dados dos usuários”. Os autores e a autora mostram como as diversas plataformas que usamos (Google, Facebook, Twitter, Instagram, Whastapp, Uber, Airbnb, pra ficar nas mais comuns) estão interconectadas, formando um ecossistema que tem como objetivo principal ampliar os lucros das chamadas big five (Alphabet-Google, Apple, Amazon, Facebook, Amazon e Microsoft). De maneira articulada, esse ecossistema hoje é capaz de coletar e processar um volume gigantesco de dados (o tal do big data), de maneira individualizada, perfilando preferências, gostos, tendências de consumo e comportamento pessoais, de maneira a prever ações no interior dessas plataformas. A partir dos conteúdos consumidos, das interações, likes, comentários (dados!), o sistema é capaz de prever a probabilidade de um usuário adotar certas ações - como clicar num link para conteúdo falso ou politicamente tendencioso.
Isso que se chama de plataformização da vida social depende de um fenômeno anterior, que é a datificação. Há alguns anos, para expressar que sentíamos falta de alguém ou de alguma coisa, poderíamos fazer uma ligação telefônica, mandar uma carta, ou pintar uma frase na calçada (quem nunca?). Essas ações não geravam necessariamente o registro de informações. Hoje, quando postamos qualquer meme com um “saudades né minha filha?”, essa ação gera um dado, um registro. Por mais que você cancele o envio, apague a mensagem para todos, retire a postagem, um registro da sua ação foi feito e está armazenado. Esse é o preço que pagamos pelo uso das plataformas. Não existe almoço grátis.
A partir disso, podemos claramente diferenciar um site dos anos 2000, que ainda que oferecesse um espaço de interação como uma sala de bate-papo, está anos-luz de uma plataforma como o Facebook, que tem sucesso graças à incorporação de estratégias de coleta, processamento e uso de dados dos usuários que alimentam sistemas de recomendação muito eficazes. E infelizmente nem todos (talvez a maioria) estão atentos a isso. É neste sentido que podemos dizer, com Van Dijck, que “as plataformas não refletem o social, elas produzem a estrutura social na qual vivemos”.
Usos sociais e impactos políticos
Neste ponto então podemos falar um pouco sobre os usos sociais e impactos políticos desse contexto de hiperconexão, datificação e plataformização. Alguém poderia agora me questionar: “mas professora, será mesmo que toda a estrutura social hoje é determinada por esses fenômenos? E o que dizer das pessoas e comunidades que estão fora da rede? E se eu me isolar na Chapada Diamantina pra viver à margem de tudo isso?” Ok, do ponto de vista individual, isso em partes é possível. Mas do ponto de vista coletivo, não há mais caminho de volta. A política, a economia, a educação, a cultura, a justiça, são sistemas sociais que estão permanentemente impactados pelo digital. De novo, o contexto pandêmico nos leva a refletir sobre como nossa sociedade está estruturada sobre a lógica da rede. O sistema educacional, hoje, em 22 de julho de 2020, depende das plataformas. Não estaríamos aqui, não fosse por essa infraestrutura.
Neste ponto gostaria de fazer uma diferenciação que é muito importante principalmente para quem é da comunicação. Vocês acham que é adequado ou correto dizer que a internet é um meio de comunicação?
Defendo que ela é mais que isso. Um meio é algo através do qual se transmite alguma coisa. Uma tubulação, um cabo elétrico, uma frequência de rádio ou televisão. Se a rede colabora para produzir a própria estrutura social na qual vivemos, podemos dizer que a internet é um ambiente, que as plataformas digitais são ambientes de vivência e convivência, um ambiente de sociabilidade. Não são apenas meios através dos quais recebemos e enviamos mensagens. São lugar de troca de informações e afetos. De formação de grupos de interesse e de comunidades. A internet, sobretudo a internet de 2020, é a internet social.
É somente a partir desta base que podemos então pensar nos efeitos políticos das plataformas digitais, que certamente são muitos e muito importantes. Vejamos alguns, e apenas alguns.
A possibilidade de conexão e troca entre pessoas geograficamente afastadas que seria impossível de outra forma. Do ponto de vista político, as consequências podem ser positivas ou negativas. Quando pensamos, por exemplo, na formação de um grupo de vítimas de violência doméstica, que se unem numa comunidade de apoio mútuo e ganham força para pressionar o parlamento e o governo por leis e políticas públicas de proteção e punição para agressores. Neste caso, a existência da rede tem um efeito positivo, claro.
Agora pensemos em radicais supremacistas espalhados pelos quatro cantos do mundo. Sua posição ideológica é condenável moralmente, sabemos. Há discursos e leis quem atuam para coagir que o racismo se manifeste. Isolados, supremacistas não se sentem à vontade para expressar seu preconceito, até porque existe um ambiente social que nem sempre é favorável neste sentido. Existe um custo social de se declarar racista em certos ambientes, é fato. Quando essas pessoas se reúnem, porém, através da rede, se identificam e se fortalecem. Formam comunidades de afeto e apoio mútuo, assim como a comunidade contra a violência doméstica, só que pelos motivos errados. Suas crenças se fortificam, por um processo conhecido como consonância cognitiva, que é nossa tendência a evitar o contraditório, a buscar informações e contextos que reforcem nossos pensamentos e sentimentos. Em conexão, essas pessoas legitimam umas às outras, e passam a se sentir no direito de reivindicar um lugar de expressão na esfera pública. Isso acontece não só com racistas, mas com machistas, homofóbicos, extremistas, terraplanistas, movimentos anti-ciência, anti-democráticos, antipolítica, antidireitos, entre outros, com todas as consequências negativas que hoje observamos em cinco minutos de rolagem no twitter. Aquilo que chamamos de crise democrática contemporânea (e que não é a primeira, não nos enganemos) decorre do fortalecimento de grupos contrários aos princípios democráticos básicos e que é possibilitado, sim, pelas plataformas digitais.
É preciso também estar atento para o que Van Dijck e outros autores da economia política do digital apontam: plataformas são produtos de empresas, que acumularam poder e capital significativo nos últimos anos. É grande a chance de que seus interesses se sobreponham sobre os interesses dos cidadãos e dos estados. A manutenção da democracia não é o objetivo do Facebook, a geração de lucro é o objetivo do Facebook (incluindo aqui todos os sistemas e aplicativos que compõem o conglomerado). A mera omissão de uma plataforma como essa pode gerar efeitos sociais devastadores, quando pensamos, por exemplo, na propagação de informações falsas sobre vacinas ou sobre candidatos à presidência. O caso Cambridge Analytics já deixou bem claro que não se trata apenas de omissão, mas de uso indevido de dados dos usuários para fins políticos. Quando pensamos em usos eleitorais das plataformas digitais, é inevitável pensar em 2016, nos Estados Unidos, e em 2018, no Brasil. Não vou aqui me aprofundar na discussão sobre fake news e informações falsas em campanhas políticas, eleitorais ou permanentes, mas queria apontar uma relação. É sabido que grupos políticos de direita e extrema-direita estão ganhando a batalha no uso estratégico das plataformas digitais. É sabido que esses mesmos grupos políticos são alinhados com uma política econômica neoliberal, que favorece grandes conglomerados empresariais que lucram não apenas com as plataformas, mas principalmente atuando no mercado financeiro. Deixo pra vocês ligarem os pontos e pensarem sobre isso para uma conversa futura.
Mesmo no meio de uma pandemia, nem tudo é pandemônio. Quero terminar com algumas ponderações mais positivas. Nem todos os efeitos políticos da digitalização, plataformização e datificação da vida são nefastos. Vou dar um único exemplo, bem atual. As deliberações no Senado e na Câmara Federal e estaduais, hoje, só acontecem através de sistemas digitais. Por conta da pandemia de Covid-19, as sessões dos parlamentos estão suspensas. Não teríamos atividade da política representativa hoje se não fossem as plataformas digitais. Em um momento em que o poder executivo tem tendências claramente autoritárias, pensem em como que seria não ter o Congresso atuando. Gostemos ou não dos representantes que elegemos para as casas, é fato que o parlamento, assim como a justiça, é um contrapeso ao executivo no sistema democrático. Pensem o que seria do Fundeb, aprovado ontem no Congresso em uma proposta que amplia os recursos para a educação básica para o ano que vem, se não fosse a infraestrutura que permitiu a deliberação por parte dos parlamentares.
Assim como pode fazer circular mentiras, a rede e as plataformas podem ajudar a informar e educar para uma vida política mais saudável e democrática. Podem gerar situações de interação entre representantes e representados. Podem proporcionar a participação no processo político, através de consultas públicas, fóruns, petições, iniciativas que já acontecem e que devem ser ampliadas. Podem ser ambientes de articulação de grupos minoritários. Podem ser lugar de exercício do debate, de compreender as diferenças e buscar o consenso, ainda que num comentário numa rede social. A rede pode ser espaço para publicidade de dados públicos, e de certa maneira já é, por imposição de leis como a lei da transparência e a lei do acesso à informação.
Assim como Pierre Lévy, não gosto de pensar que a tecnologia nos impacta, como um projétil, como algo que vem de fora e nos atinge, a despeito das nossas escolhas. A tecnologia é por nós criada, e seu uso é também nossa responsabilidade. Se há pessoas, grupos, estados ou empresas fazendo dela mal uso, isso deve ser reconhecido, como cidadãos devemos nisso nos implicar, e é contra isso que devemos lutar.
Profa. Dra. Tatiana Güenaga Aneas . tatianeas@academico.ufs.br Departamento de Comunicação Social . Universidade Federal de Sergipe Programa de Pós-graduação em Comunicação . PPGCOM UFS Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Cinema . PPGCINE Laboratório de Análise em Visualidades, Narrativas e Tecnologias . Lavint
REFERÊNCIAS
GOMES, Wilson. A Democracia no Mundo Digital: histórias, problemas e temas. Edições Sesc: São Paulo, 2018. Disponível em: https://storage.googleapis.com/stateless-inctdd-website/2019/03/ e2a3d5ec-a-democracia-no-mundo-digital-wilson-gomes.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The Plataform Society: Public Values in a connective world. Oxford University Press: New York, 2018.
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