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Foto do escritorObs. da Democracia UFS

HISTORIADORES NAS DISPUTAS NARRATIVAS NO YOUTUBE: Notas para um debate (Antônio Fernando Sá).


Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

Em sua teoria da história da cultura histórica, Jörn Rüsen asseverou que os novos meios de comunicação têm desafiado à ciência da história, “enquanto constituição histórica de sentido em forma cognitiva”, pois, em nossos dias, há uma mutação vivenciada pela humanidade só comparável à transição da oralidade à escrita. Segundo esse historiador, essa “mutação transforma a prevalência da escrita (que sustenta plenamente o trabalho da ciência da história e determina sua lógica) em uma prevalência dos novos meios” (RÜSEN, 2015: p. 239).

A hesitação dos historiadores em lidar com essa nova problemática talvez se deva pela dúvida e incerteza em utilizar esses novos meios, a partir de um emprego especificamente científico. Entretanto, de modo mais modesto, os historiadores profissionais têm disputado narrativas históricas na plataforma YouTube, com o objetivo mitigar a distância entre a produção intelectual universitária e o grande público. A divulgação histórica, como parte constitutiva do ofício do historiador, trouxe a necessária e urgente discussão “sobre o que fazem e quem são os historiadores que ocupam a esfera pública” (MALERBA, 2018: p. 123), especialmente nas variadas mídias (livros, televisão, internet, cinema, museus etc.).

Como lugar por excelência da produção social de sentido nas sociedades contemporâneas, essas mídias modificam “a ontologia tradicional dos fatos sociais”. Para Muniz Sodré, a mídia (jornais, rádio, televisão, TV a cabo, Internet etc.) é um dos principais espaços de produção histórica, introduzindo novas práticas de linguagem, novos ambientes culturais, novas relações de poder e parindo uma nova concepção de história (SODRÉ, 1996: 27-28).

O desafio de produzir conhecimento histórico na era digital tem instigado a reflexão sobre o papel social do historiador em meio à explosão da demanda pública por história. Como localizar sites confiáveis na Internet no campo da história, segundo os pressupostos de originalidade e responsabilidade no trato das fontes primárias com a construção de uma argumentação lógica e objetiva? (SMITH, 2005).


No âmbito universitário, a produção de conteúdo sobre a história na plataforma YouTube sofreu certo temor ou mesmo desconfiança, em seu início em 2005, chegando ao extremo de, na Universidade Federal de Sergipe, se bloquear o acesso à plataforma aos estudantes, uma década atrás. Passado esse momento, conscientes de que essa ferramenta é “um espaço legítimo e importante de atuação dos historiadores e historiadoras” na esfera pública (RODRIGUES, 2019: p. 74), os professores Marcos Silva (UFS) e Gustavo Alves Alonso Ferreira (UFPE) debateram, virtualmente, as contribuições e as dificuldades encontradas na gestão e produção de canais de divulgação histórica no nordeste brasileiro.


Em vídeo publicado no canal Ensino de História – Educomunicação do YouTube, em 22 de nov. de 2017, o professor Marcos Silva explicitou os princípios norteadores para a construção do projeto de extensão Lente Histórica, coordenado por ele, com a ajuda voluntária de estudantes do curso de História, da Universidade Federal de Sergipe. Essa proposta se baseou em uma pedagogia de projetos, onde o professor estabeleceu um desafio cognitivo para a criação de um canal no YouTube, dentro das atividades da disciplina Didática e Metodologia do Ensino de História, no primeiro semestre de 2017.


Desenvolvido nos anos de 2018 e 2019, sob a perspectiva da “educomunicação”, o projeto se insere em um “um novo campo teórico-prático de intervenção social”, em que a relação entre educação e comunicação é vista a partir da “necessidade de educar os cidadãos para recepção crítica e ativa” (SILVA, 2015: p. 2 e 4).

Buscando “explorar o potencial do espaço cibernético para a difusão do conhecimento histórico”, o projeto de extensão produziu 15 vídeos, com o objetivo de desenvolver a “consciência histórica não só de pessoas em idade escolar, mas do público em geral apreciador da arte de Clio” (SILVA, 2020).


Inspirado na obra de Jörn Rüsen, o canal se pauta na definição de que “a cultura histórica é a memória histórica exercida em e pela consciência histórica, que fornece uma orientação temporal à práxis vital dos sujeitos, necessária à compreensão de si mesmos e do mundo” (GONTIJO, 2019: p. 70). Como expressão da forma de refletir sobre a vida concreta do agente racional humano e sobre sua posição no processo temporal de existência, a consciência histórica “precisa da memória – individual e coletiva – como referência dos conteúdos”. Dois dos seus elementos constitutivos são “a identidade pessoal” e a “compreensão do conjunto social a que pertence, situados no tempo” (MARTINS, 2019: p. 55).

Nesse sentido, o projeto considera a consciência histórica como “uma categoria básica da didática da história, abrangendo suas cinco operações básicas de constituição histórica de sentido: perguntar, experimentar ou perceber, interpretar, orientar, motivar”. Portanto, essa noção “contribui para o desenvolvimento do sujeito e fortalece sua capacidade de aprendizagem” (MARTINS, 2019: p. 58 e 56).


O reconhecimento da importância dessa experiência inovadora no ensino de história se materializou no Prêmio de Melhor Comunicação dos Projetos de Extensão, durante a Semana Acadêmica e Cultural, pela Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e de Extensão (PROEX), da Universidade Federal de Sergipe, em 2018.


Seguindo essa mesma perspectiva da necessária interlocução entre a produção do conhecimento na universidade pública e a sociedade, o canal ABC do Forró, do professor Gustavo Alonso Ferreira, criado em maio de 2020, opta por outra possibilidade de desenvolver a consciência histórica, por meio do debate sobre a importância do forró na cultura brasileira, a partir da trajetória do sanfoneiro Dominguinhos.


Em sua experiência docente no curso de pós-graduação em música da Universidade Federal de Pernambuco, esse historiador articula sua pesquisa sobre Dominguinhos com o processo de patrimonialização do forró, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), coordenado pela Associação Respeita Januário, que, desde os anos 2000, “realiza consultorias para a divulgação e consultorias para a divulgação e a valorização da produção musical tradicional do Nordeste” (MASCARENHAS, 2019: p. 47).


Apesar do processo de patrimonialização do forró ter sido iniciado em 2019, várias iniciativas e projetos para a salvaguarda do forró tornaram-se referências para a confecção do dossiê, “procedimento técnico necessário para a inscrição do gênero no Livro das Formas de Expressão do Patrimônio Cultura Imaterial do Brasil”. A jornalista Paula Mascarenhas registrou a iniciativa da Associação Cultural Balaio Nordeste, em 2011, coordenado pela pesquisadora Joana Alves, e a Carta de Diretrizes para Instrução Técnica do Registro de Matrizes do Forró, produto do Encontro Nacional para Salvaguarda das Matrizes do Forró, realizado em João Pessoa no ano de 2015. Documento este, aliás, que orienta a produção do Dossiê de patrimonialização (MASCARENHAS, 2019: p. 44 e 47).


No canal, pequenos vídeos trazem curiosidades sobre esse gênero musical como mote para discutir questões como a cultura patrimonial, o machismo, a questão de gênero e suas relações com a política. Esse trabalho de divulgação histórica, por parte de Gustavo Alonso Ferreira, é importante para levar a um público mais amplo as múltiplas facetas desse gênero musical, “garantindo assim que a história que compõe essa complexa expressão cultural seja uma narrativa conhecido por todos” (MASCARENHAS, 2019: p. 51).

Esses canais do YouTube são exemplos das potencialidades de se trabalhar, no âmbito do espaço digital, questões relacionadas à história e a cultura nordestinas, ampliando a “escrita da história” para além dos limites da escrita histórica acadêmica, na medida em que inclui “todas as maneiras pelas quais um sentido do passado é construído em nossa sociedade”. Na produção social da memória, todos participam, embora de modo desigual, e não necessariamente adquire uma forma escrita ou literária (GRUPO MEMÓRIA POPULAR, 2004, p.283).


Em uma conjuntura em que experimentamos a proliferação de negacionismos ou mesmo mentiras históricas perpetradas por pessoas inescrupulosas no YouTube, que ganham, sem qualquer inspeção prévia e sem sanção possível, credibilidade apenas pela circulação da mensagem, experiências, como as aqui relatadas, evidenciam que “a verdade histórica se tornou um ato necessário de coragem cívica” (HUNT, 2018: p. 4). A construção da consciência histórica, crítica e cidadã, deve se pautar no trato cuidadoso com as fontes primárias e a clareza na argumentação.

BIBLIOGRAFIA

GONTIJO, Rebeca. Cultura Histórica. In: FERREIRA, Marieta Moraes e OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (org.). Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.

GRUPO MEMÓRIA POPULAR. Memória Popular: Teoria, Política e Método. In: FENELON, Déa Ribeiro et. al. (org.). Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho d’ Água, 2004

HUNT, Lynn. History: why it matters. Cambridge: Polticy Press, 2018.

MALERBA, Jurandir. Notas à margem: Teoria e crítica historiográfica. Vitória: Editora Milfontes, 2018.

MARTINS, Estevão de Rezende. Consciência Histórica. In: FERREIRA, Marieta Moraes e OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (org.). Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.

MASCARENHAS, Paula. O processo de tornar o forró patrimônio cultural. Revista Continente Multicultural. Ano XIX, n. 226, outubro 2019, p. 44-51.

RODRIGUES, Icles. História no YouTube: Relato de experiência e possibilidades de futuro. In: CARVALHO, Bruno Leal Pastor de e TEIXEIRA, Ana Paulo Tavares (org.). História pública e divulgação histórica. São Paulo: Letra e Voz, 2019.

RÜSEN, Jôrn. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015.

SILVA, Marcos. Resumo do Projeto de Extensão Lente Histórica. Enviado via WhatsApp, em 27 de julho de 2020.

SILVA, Marcos. O que é o Projeto Lente Histórica, vídeo publicado em 22 de nov. de 2017, no canal Ensino de História – Educomunicação. Endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=NsymIAMqncg, consultado em 29 de julho de 2020 (Duração: 4 min.).

SILVA, Érica Daiane da Costa. Educomunicação: um campo essencial na construção de uma nova sociedade. In: Anais do II Encontro de Comunicação do Vale do São Francisco (UNEB). V. 1, n. 1, (2011). Endereço eletrônico: https://www.revistas.uneb.br/index.php/anaisecovale/article/view/1157. Acesso em 3 de julho de 2020.

SMITH, Carl. Can You Do Serious History on the Web? In: AHA Perspectives (February, 1998). Endereço eletrônico: http://chnm.gmu.edu/resources/essays/essay.php?id=12. Acessado em 13 de março de 2005.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.

[1] Texto escrito a partir do debate virtual “História e Cultura no YouTube”, com os professores Marcos Silva (UFS) e Gustavo Alonso (UFPE), dentro do curso de extensão Enquanto a Pandemia Rola, do Observatório da Democracia da Universidade Federal de Sergipe (31 de julho de 2020).

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