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Foto do escritorObs. da Democracia UFS

GUERRAS CULTURAIS E POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Atualizado: 28 de jul. de 2020

Por Antônio Fernando de Araújo Sá *

“O Brasil é o modelo do futuro quanto à mistura de populações e ao gosto de se encontrar, um dia, uma cultura que, sendo geral, respeite a cultura de cada um”.

Agostinho da Silva

A virada à direita na política brasileira, após as eleições de 2014, tem, sistematicamente, desconstruído a tão combalida democracia da Nova República, trazendo à luz o peso do passado autoritário presente na nossa cultura política, desde os primórdios republicanos. O golpe político contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, modificou profundamente a política pública de cultura no Brasil, com uma operação de desmonte das instituições culturais, iniciado com a assunção de Michel Temer à presidência da república e aprofundado pelo projeto autoritário de Jair Bolsonaro, eleito em 2018. Tendo como um dos grandes objetivos “desobrigar de pensar”, a cultura política bolsonarista segue a lógica da guerra, inviabilizadora da “convivência democrática”. A normalização do estado de crise e de colapso se tornou a forma de governar da extrema direita no Brasil (NOBRE, 2020).

No âmbito da política pública de cultura, o governo bolsonarista rebaixou o Ministério da Cultura a uma Secretaria Especial, vinculada, primeiro, ao Ministério da Cidadania e, depois, ao Ministério do Turismo, transformando-a em um bastião da “guerra cultural” do conservadorismo contra o suposto aparelhamento da esquerda na área cultural. Os que assumiram como secretários de cultura, nesse período de 18 meses de governo, deram mostras de vinculação ao imaginário conservador, regressivo ou escancaradamente reacionário.

A forma parasitária de gestão da área cultural se coaduna com essa política, demonstrando certa racionalidade à ação governamental, no sentido de responder aos setores que defendem a censura e o retorno da intervenção militar em uma suposta defesa da ordem e dos bons costumes, perdidos, segundo eles, com o processo de redemocratização. Para Bolsonaro, a “verdadeira democracia” foi a “que existia durante a ditadura militar” (NOBRE, 2020). Esse é, aliás, um componente ideológico importante na política de Bolsonaro, que conseguiu agregar movimentos políticos de extrema direita, com uma agenda ultraconservadora e forte apelo anticomunista.

A instabilidade de gestão tem sido a tônica na área cultural, com constantes mudanças de secretários, em seus breves mandatos, como no caso de Henrique Pires, Ricardo Braga, Roberto Alvim e Regina Duarte. No último dia 23 de junho, Mário Frias assumiu o cargo. Mas, mesmo com o combate permanente de destruição da democracia, o Estado e a burocracia continuaram funcionando, ainda que de forma precária. A adoção do método do caos como forma de governar não extinguiu as instituições vinculadas ao antigo Ministério da Cultura, como são os casos do Instituto do Patrimônio Histórico de Artístico Nacional (Iphan), da Agência Nacional do Cinema (Ancine), da Fundação Nacional de Artes (Funarte), do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), da Fundação Cultural Palmares (FCP) e da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB).

Do ponto de vista ideológico, há um ponto em comum entre esses gestores: o combate ao famigerado “marxismo cultural”. Esse termo, que tem sido recorrentemente utilizado por elementos do governo Bolsonaro, tem sua certidão de batismo na obra Mein Kampf, de Adolf Hitler, que foi “uma declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o bolchevismo” (COSTA, 04/10/2019). Portanto, não é fortuita a alusão no discurso de Roberto Alvim às ideias do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, e a composição pomposa de um cenário que incluía a música de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler. A indignação do plágio ao discurso de Goebbels, por parte da comunidade judaica e amplos setores da sociedade civil, resultou na sua demissão.

Mas o ovo da serpente estava instalado na gestão da cultura nesse governo, pois esse mesmo secretário havia nomeado para a presidência da Fundação Palmares, Sergio Camargo, que, após disputa judicial para assumir o cargo, tem empreendido notória militância contra o movimento negro, defendendo ideias que relativizam a escravidão no Brasil. Em seu mandato à frente do órgão, “ele não teve nenhuma reunião com líderes quilombolas, estudiosos da questão racial ou entidades que a Fundação deveria representar”, segundo recente reportagem publicada no site UOL (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/06/25/presidente-da-fundacao-palmares-nao-recebeu-movimento-negro.htm). Além disso, o site da fundação tem publicado textos que textos ofensivos à memória e a cultura afro-brasileiras, o que motivou a criação de uma petição na plataforma Charge.org, para sua destituição do cargo, assinada por mais de 100 mil pessoas (https://catracalivre.com.br/cidadania/100-mil-pessoas-pedem-exoneracao-de-camargo-da-fundacao-palmares/).

Ao substituir Roberto Alvim à frente da secretaria, Regina Duarte manteve como elemento ideológico norteador o combate ao “marxismo cultural”, inclusive minimizando os crimes de tortura durante a ditadura civil-militar e cantando, em entrevista ao programa 360 da CNN, do dia 7 de maio de 2020, a marchinha “Pra Frente Brasil”, símbolo dos anos de chumbo do governo Médici. Essa entrevista se insere nas disputas da memória social sobre a ditadura civil-militar brasileira, outorgando “legitimidade a uma série de narrativas negacionistas, que vêm sendo amplamente difundidas, inclusive como política de Estado” (BAUER, 2020: p. 185), especialmente nas manifestações públicas de Jair Bolsonaro.

Como campo de disputas memoriais, vemos que “nem o golpe de 1964 nem a ditadura militar tinham se transformado em história”. Nos discursos negacionistas, a disposição para adulterar fatos históricos, com intenções ideológicas, “é uma boa maneira de se investir contra a democracia” (STARLING, 2019: p. 341 e 343). Nesse sentido, os usos do passado da ditadura no presente objetivam construir “um passado que nunca existiu”, narrado “como utopia, e o retorno a esse período melhoraria a economia e a segurança, pois a ditadura teria logrado êxito nesses campos” (BAUER, 2020: p. 200).

A omissão da secretária de cultura diante das mortes de artistas representativos da cultura brasileira, durante a pandemia do coronavírus, como Aldir Blanc, Moraes Moreira, Rubem Fonseca e Flávio Migliaccio, aliada ao parasitismo no enfrentamento das suas consequências na vida dos trabalhadores da cultura no Brasil, podem ser considerados como uma dupla face da ausência de uma política cultural do governo Bolsonaro, coerente com sua prática política da cultura da morte dentro da lógica de guerra.

Como forma de amenizar o impacto da crise econômica nas atividades culturais, foi aprovada no Congresso Nacional, por pressão dos parlamentares de partidos de esquerda e da mobilização virtual de artistas, uma ajuda para os trabalhadores dessa área, a partir da utilização das verbas do Fundo Nacional de Cultura. Os cerca de 3 bilhões de reais serão repassados aos estados, municípios e ao Distrito Federal, para manutenção de espaços, editais e chamadas públicas, além de um auxílio de 600 reais para esses trabalhadores, em geral precarizados, que compõem cerca de 44% dos cinco milhões segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNUD), em 2018 (STROPASOLAS, 04/05/2020).

O consenso para a votação do texto na Câmara dos Deputados, do Senado e, pasmem, a sanção presidencial demonstra, como escreveu a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB), uma “rara unidade e convergência entre governo e oposição, em um contexto de extrema polarização política e social” (FEGHALI, 2020). Talvez a homenagem dessa lei ao grande compositor Aldir Blanc seja uma boa oportunidade para iniciarmos a luta contra o grande descompasso, no Brasil, entre a “convivência de atraso e progresso, de miséria e sofisticação tecnológica, presente sobretudo nas desigualdades econômicas regionais” (PELLEGRINI, 2008: p. 69). Como disse Jorge Mautner, inspirado no filósofo português Agostinho da Silva, “Não há abismo que o Brasil não caiba”.


*Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

BIBLIOGRAFIA

BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da ditadura brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: KLEM, Bruna; PEREIRA, Mateus e ARAUJO, Valdei (organizadores). Do fake ao fato: Des(atualizando) Bolsonaro . Vitória (ES): Milfontes, 2020.

COSTA, Iná Camargo. Marxismo cultural, um fantasma que ronda a História. Outras palavras: jornalismo de profundidade e pós-capitalismo. Endereço eletrônico: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/marxismo-cultural-um-fantasma-que-ronda-a-historia/. Publicado 04/10/2019 e acesso em 29/06/2020.

FEGHALI, Jandira. A Esperança equilibrista na lei. Folha de São Paulo. 7/06/2020. Endereço eletrônico: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/a-esperanca-equilibrista-na-lei.shtml. Acessado em 02/07/2020.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. O preço de uma reconciliação extorquida. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: BOITEMPO, 2010.

MATTOS, João Rodrigo. Agostinho da Silva: um pensamento vivo. Alfândega Filmes, 2003, 79 min. (filme).

MAUTNER, Jorge. Não há abismo que o Brasil não caiba. Rio de Janeiro: Deck Disc, 2019.

NOBRE, Marcos. Ponto-final: A guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020 (Coleção 2020 - Edição do Kindle).

ORTIZ, Renato. Estudos Culturais. Tempo Social (USP). São Paulo, junho 2004, p. 119-127.

PELEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2008.

STARLING, Heloísa Murgel. O passado que não passou. In: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 337-354.

STROPASOLAS, Pedro. Como a pandemia atinge o mundo da Cultura. Outras Mídias. Endereço eletrônico: https://outraspalavras.net/outrasmidias/como-a-pandemia-atinge-o-mundo-da-cultura/. Publicado em 04/05/2020 e acessado em 02/07/2020.

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