Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torna impossível para esta ampliar seus conhecimentos, purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço
(KANT, 1783)
Duas palavras-chaves traduzem a política educacional do atual governo nos seus primeiros sete meses de mandato: neoliberalismo e conservadorismo. São esses os elementos que unificam as (des) ações operadas ao longo do primeiro semestre na área da educação. São dois pilares da atuação do governo que foram orquestrados para reverterem e minar as conquistas qualitativas operadas pelas políticas inclusivas no âmbito das opções curriculares (que implicaram a inserção de uma pauta que valorizava as minorias e as diferenças) e os avanços quantitativos do crescimento das universidades e institutos federais no Brasil, operados ao longo das duas últimas décadas. No frigir dos ovos o que está em questão é o avanço da transformação das instituições educacionais em redes de supermercado e a consolidação e ampliação da resistência ao discurso filosófico da modernidade (que advoga a igualdade, a liberdade e a diferença como elementos inalienáveis da condição humana).
As observações de Antônio Severino sobre a educação são assaz relevantes para a compreensão do momento atual. Elas apontam que essa instituição é uma prática social humana intencional e interventiva, indica que ela é constituída de ações mediante as quais os agentes pretendem atingir determinados fins relacionados com eles próprios, ações que visam provocar transformações nas pessoas e na sociedade, ações marcadas por finalidades buscadas intencionalmente.
Assim, entendemos que as ações desenvolvidas por qualquer governo estão, ou deveriam estar, direcionadas a atingir determinados fins. No intuito de vislumbrar e mensurar a intencionalidade das ações empreendidas pelo governo Bolsonaro, optamos por apresentar, brevemente, alguns dos pilares que tem orientado a política do MEC (Ministério da Educação).
O primeiro pilar remete ao controle sobre a dimensão emancipatória e crítica do conhecimento escolar. Uma sociedade cujo longo estatuto do analfabetismo forjou e limitou a sensibilidade em relação ao entendimento do mundo, não permitindo que ele perdesse sua áurea mística em relação às suas possibilidades, viu-se nos últimos vinte anos minada pelo processo de universalização da escolarização. Neste sentido, um dos aspectos fundantes do discurso conservador do atual governo acerca da educação, proveniente do ESP (Escola Sem Partido), é uma reação a esses efeitos de poder do conhecimento escolar. Essas políticas traduzem os interesses dos setores patriarcais e religiosos no âmbito do governo das subjetividades operadas pelas políticas educacionais. De uma pauta marcada pela necessidade da escola promover a dissolução dos conceitos estruturantes do patriarcado, do racismo, da xenofobia, do bullying, vemos o ressurgimento de uma agenda caracterizada pela ressureição desses horizontes. No bojo desse processo, homens e evangélicos, suas redes e igrejas, todas organizadas para promoverem a anti-moderna e mercantil cosmovisão machista e racista da humanidade.
Da nomeação do Ricardo Velez, “filósofo” conservador, passando pela sugestão de execução dos hinos na escola e da proclamação do slogan do governo, pela indicação de uma convicta defensa da educação baseada nas escrituras bíblicas para a secretaria executiva do MEC, atravessada pela criação de uma comissão do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos) para “verificar” as questões do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), até a substituição daquele ministro por outro, Abraham Weintraub, de feição pouco religiosa e eminentemente neoliberal, percebe-se uma articulação harmônica entre a esfera liberal do mercado e a esfera conservadora da cultura patriarcal religiosa como as duas facetas do novo governo para a Educação.
Se a orientação ideológica foi presente massivamente nos primeiros três meses, sem que ela tenha perdido sua força nesse segundo trimestre da política educacional ou possa ser dissociada do discurso econômico, a face neoliberal desse projeto se materializou subitamente nos últimos meses. Primeiro veio à eliminação de 137 mil cargos de IF´s (Institutos Federais), seguido da ameaça de corte de verbas às universidades que promovessem debates e ações com orientações políticas cognominadas de “esquerda”, do corte de 30% das verbas, a supressão de mais de 3.500 bolsas de mestrado e doutorado, até a escancarada veia privatizante do plano de modernização que busca reorientar as representações e o papel da universidade no desenvolvimento da sociedade brasileira e o papel do estado nesse processo. O “future-se”, a médio prazo, representa a extinção da pesquisa, do ensino e da extensão públicas brasileiras e a diluição das universidades federais na rede de supermercados da educação.
Se por um lado, “Deus” e o “Mercado” indicam a ossatura da política educacional, por um outro, a ambiguidade da tensão e da resistência tem sido as balizas pelas quais tem orbitado todo o movimento que insurge contra o caráter medieval e anacrônico desse governo. Com o apoio limitado de uma pequena representação cujo poder mais expressivo é o barulho, os 48% da população brasileira que não endossou esse projeto tem contribuído para intimidar a voracidade desse governo em entregar ao mercado, a sorte dos desvalidos brasileiros. Diversos protestos em âmbito nacional indicam a força desse contingente e o caráter polarizado das tensões políticas que marcam o Brasil desde 2013.
Encerramos esse relato sumário e ensaístico com as sábias e estratégicas observações de Condocert [1791]. Elas, duzentos anos depois, ainda iluminam e sugerem o horizonte de entendimento do que está em jogo na luta política contemporânea sobre o controle do conhecimento escolar.
Generosos amigos da igualdade e da liberdade, reuni-vos para obter do poder público uma instrução que torne a razão popular, ou se não for assim, deveis temer perder logo todo o fruto de vossos nobres esforços. Não imagineis que as leis mais bem elaboradas possam tornar um ignorante igual a um homem hábil e tornar livre aquele que é escravo de preconceitos.
Comments