A crise da democracia no Brasil tem sido um dos assuntos mais discutidos em rodas de conversas nos corredores de universidades. A ascensão de um presidente de extrema-direita impôs um processo de regressão social, marcado por um reacionarismo compartilhado por setores da mídia, representantes do mercado financeiro e do judiciário. A organização da subjetividade pela libido repressora, na crise estrutural capitalista de 2008, trouxe reclamos de segurança e ordem contrapondo-se aos de emprego, bem-estar social e dignidade, conforme bem analisou o filósofo e jurista Alysson Leandro Mascaro.
Após sete meses do novo governo, seu foco narrativo em temas moralistas se insere na perspectiva acima, fugindo de pautas que deveriam interessar a qualquer Estado: a garantia de direitos e a redução das desigualdades. A ideia de que a base filosófica da concepção de democracia se realiza na participação coletiva, na justiça social, nas liberdades e nas responsabilidades dos indivíduos promovidas e garantidas pelo Estado tem rapidamente perdido fôlego e se encontra extremamente fragilizada pelas declarações e ações do presidente e de seus ministros.
O pacto político construído em torno da Constituição de 1988 se encontra em frangalhos, após o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, seguido do governo espúrio de Michel Temer e da eleição de Jair Bolsonaro. Os poderes executivo, legislativo e judiciário têm trabalhado com agendas próprias, buscando garantir o mínimo da constitucionalidade, mas sendo coniventes com a destruição de inúmeras garantias constitucionais por interesses corporativos inconfessos. O que é ratificado por vários especialistas que têm apontado inúmeros indícios de crime de responsabilidade e que poderiam levar o presidente a um processo de impeachment.
Enquanto isso, alguns setores da sociedade continuam apáticos após as eleições de 2018, ainda amedrontados e inertes depois do longo período de crise política, provocado pelo processo de impeachment da presidenta Dilma, seguido do desastroso governo Temer. Esses setores continuam aguardando a recuperação da economia e alimentando o ódio provocado pela ideia de “guerra cultural”, como se enfrentassem um inimigo comum, qual seja, todo e qualquer tipo de alteridade – que passa a ser rotulada genericamente de esquerda, comunista, corrupta e imoral. Vivem imersos no pânico moral que foi alimentado e manipulado pelas mídias de comunicação de massa, mas também modulado pelas redes sociais digitais que distribuíram entre os eleitores e simpatizantes a associação da imagem de candidatos a valores morais específicos, em uma operação ainda nebulosa de propaganda eleitoral criminosa através de aplicativos, que favoreceu a valorização dos extremismos.
Ao assumir a presidência e continuar alimentando discursos de ódio, usar o cargo público obtido pelo voto em benefício próprio, de familiares e amigos, difundir diariamente notícias falsas, intervir em agências e órgãos de regulamentação e controle, desrespeitar os princípios isonômicos, técnicos e coletivos ou colegiados de escolha de embaixadores, diretores de polícia, de órgãos de fiscalização, de órgãos de cultura, de institutos de pesquisa, de reitorias de institutos e universidades, entre outros, Bolsonaro vai tecendo seu modus operandis autocrático. Mesmo que o tráfico de influências, a corrupção, a prevaricação e a imoralidade estejam aí presentes, embora travestidos do pior nacionalismo barato na ideia de “cidadãos de bem”. Sob tal noção ele quer difundir a ideia de ser impoluto, mesmo que haja vários indícios de que esteja cometendo crimes previstos em Lei, tanto comuns quanto de responsabilidade.
Além da intervenção através da indicação de nomes, o governo tem desmontado a estrutura dos principais setores responsáveis pela produção de conhecimento e promoção da igualdade social no país. Setores de alto impacto social como a educação, a ciência, a cultura e o meio ambiente são tratados como inimigos, comprometendo a dinâmica da economia, a produção de soberania através do desenvolvimento das artes, da ciência e da tecnologia nacional e a contribuição direta e indireta na redução da desigualdade social. Talvez não haja ingenuidade no fim que se quer alcançar, qual seja, a destruição do sistema que possibilita que as soluções sejam construídas de forma coletiva, com base na liberdade de opinião, da responsabilidade científica e da ampla participação dos mais diferentes setores da sociedade. Essa faceta do governo é o que há de mais nefasto e ataca diretamente os fundamentos que foram sendo construídos e amadurecidos coletivamente a séculos sobre a relação entre Estado e democracia, embora saibamos que ameaças autoritárias sempre estão à espreita e seus modos de ação são bastante previsíveis.
Quantos dos 57,8 milhões de eleitores de Jair Messias Bolsonaro realmente demonstram o desdém de seu presidente pela ciência e pelas universidades? Quantos consideram as preocupações com questões ambientais como coisas de veganos? Quantos estão realmente dispostos a exterminar seus opositores? Ou estariam dispostos a louvar Ustra ou a compactuar com o tipo de fala cruel do presidente sobre tortura ou sobre os mortos e desaparecidos durante a ditadura?
As questões colocadas acima suscitam a constatação de que, entre vazamentos, impropérios e decisões raivosas, a ideia de democracia parece cada vez mais distante após os primeiros sete meses de governo. Essa constatação é aterradora, a final, a maioria dos eleitores que compareceu às urnas certamente acreditava que, ao depositar seu voto, estava colaborando com a “manutenção” de valores democráticos, independente de quem fosse o eleito, e os que votaram em Bolsonaro provavelmente também acreditam nisto. Historicamente já conhecemos outros exemplos através dos quais as democracias foram engolidas por esse dispositivo que deveria ser seu principal legitimador. A democracia não é um princípio que possamos colocar em questão através do voto, como se por ele pudéssemos desfazê-la, mesmo que alguns pensem assim. Enquanto ideal é um direito humano universal e não pode ficar à mercê do oportunismo das circunstâncias, sob o risco de nossa própria extinção.
Ou será que não existe um vislumbre de democracia na maioria dos “interessados” escolher o seu destino? Talvez a questão ganhe em dramaticidade se retomarmos um possível direito de que a maioria dos participantes optaram por uma proposta ou ideal político que se coloca a partir de uma imagem de que o destino dos não interessados ou dos “derrotados” é ser, obviamente, subjugados pela força de mobilização do grupo vencedor.
A ideia de subjugar o todo ao interesse do grupo ou aliança vencedora está presente de forma majoritária nas disputas eleitorais e parece aceitável por criar um sentimento de pertencimento, unidade ou mobilização. Isso faz com que aprendamos a narrar a política como uma disputa entre virtudes e defeitos, entre pessoas preocupadas com o bem comum e inimigos dos interesses da nação. A questão é que essa narrativa que tensiona o eu e o outro é profundamente produtiva durante o processo eleitoral, contudo, infrutífera quando se pensa em como trazer soluções para construir um futuro e se depara com a necessidade de governar. Talvez porque a única forma de superar a dinâmica imposta por essa narrativa é aceitar a possibilidade de extinção do outro, como uma solução lógica para seus problemas de moralidade.
Nesse sentido, esse é o dilema de nossa democracia, uma vez que, a partir de 2013, narrativas, preponderantemente excludentes, culminaram na implicação da ideia de política a uma noção de força. Força para conseguir a maioria para depor presidentes (mesmo com dúvidas essenciais sobre a existência de um ato criminoso), força para remover adversários da disputa eleitoral (mesmo que isto custasse atropelar tramites legais), força para, após chegar ao poder, defender que a minoria derrotada deveria se curvar a maioria, ou ainda, para coagir os outros poderes (Legislativo e Judiciário) em tentativas de eliminar contrapesos à concentração de poder nas mãos do grupo vencedor.
Para chegarmos nesse cenário a história parece nos oferecer receitas precisas, que quase sempre se iniciam com uma narrativa de crise, que impõe o medo da violência, o sentimento de que os outros ganham mais direitos do que nós, de que são oportunistas, aproveitadores, ou que corrompem valores essenciais. Embora esses valores sejam, na maioria das vezes, tão difusos que mal encontrem respaldo dentro das próprias fileiras do grupo vencedor. Quando se chega a cenários como este, parece que estamos diante de um desequilíbrio extremo no jogo de poder, bem como que estamos diante de uma crise de valores – não morais, mas políticos (da ideia aristotélica de pólis) – provocados por tal desigualdade. Nestes casos, o fundamento da coesão social do Estado entra em desequilíbrio e o colapso se torna eminente, a não ser que o sistema de freios e contrapesos volte a funcionar e para isto é urgente e necessário entendermos o fenômeno que nos trouxe até aqui, antes que seu caráter destrutivo se torne irreversível.
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