Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
Departamento de História
Universidade Federal de Sergipe
Um fantasma ronda o planalto central do Brasil desde o golpe parlamentar de 2016: a censura à produção cultural, que, diferentemente da última ditadura, aparece agora articulada a um projeto cultural no Estado pautado por valores demarcados pelo mercado. Nesses tempos sombrios, em um cenário de intolerância política, com uma pauta antidemocrática com forte inserção no Congresso Nacional e regressão dos direitos civis, talvez a principal característica do governo de Michel Temer (2016-2018) tenha sido criar as condições para uma reforma neoliberal na esfera cultural, que se aprofundou com o governo de Jair Bolsonaro (2019-). Ambos encetaram o enfraquecimento das instâncias participativas da sociedade civil na construção de políticas públicas na área, articulado ao desmonte da gestão cultural do governo federal, delegando-a ao jogo do mercado (BARBALHO, 2018: p. 242).
Para entender essa mudança do papel do Estado no campo da cultura, em geral marcado pela fragilidade e descontinuidade institucional e pelo viés autoritário, temos que remontar à história das políticas culturais no Brasil desde os seus primórdios nos anos 1930. A experiência autoritária em dois momentos cruciais da constituição de políticas públicas da cultura no Brasil, como o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura civil-militar (1964-1985), por certo trouxe certa aversão à presença do Estado na organização da cultura. No primeiro caso, a construção de uma ideia de “cultura brasileira” foi marcada pela junção entre o moderno e o tradicional sob a tutoria do Estado nacional. Houve a adesão de setores intelectuais ao aparelho burocrático cultural, acomodando setores vinculados à extrema direita, liberais conservadores e democráticos, católicos, positivistas e até mesmo “alguns socialistas ocuparam postos, ainda que subalternos, na burocracia cultural” (NAPOLITANO, 2016: p. 139). Tendo como eixos institucionais o Ministério de Educação e Cultura, dirigido por Gustavo Capanema (1934-1945), e o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural criado em 1934, sob a direção de Lourival Fontes, e que se constituiu no embrião do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP - 1939), percebemos uma mescla de posições entre o catolicismo conservador, da vanguarda modernista e do liberalismo reformador, sob a chancela de Capanema, e o autoritarismo integralista e fascista de Fontes na definição da política cultural estadonovista.
No segundo caso, no início dos anos 1970, houve uma redefinição da política estatal acerca da cultura, com o Estado estimulando a cultura como meio de integração, mas sob o seu estrito controle, seguindo a cartilha da Doutrina de Segurança Nacional. As ações governamentais tendiam a adquirir um caráter sistêmico, centralizadas em torno do Poder Nacional, como a busca incessante pela concretização de um Sistema Nacional de Cultura (não realizado) e efetiva consolidação de um Sistema Nacional de Turismo, em 1967, ou de um Sistema Nacional de Telecomunicações. O Estado procurava, dessa forma, integrar as partes a partir de um centro de decisão. Dentro dessa perspectiva, a cultura podia e devia ser estimulada por uma intenção ativa na construção de uma série de atividades culturais e não somente voltada para a repressão (ORTIZ, 1985, p. 85). Nesse momento, existia uma divisão do trabalho entre a cultura de massa e a cultura "artística" e popular para o Estado autoritário pós-1964. De um lado, deixava às empresas privadas a administração dos meios de comunicação de massa, como os grandes conglomerados como TV Globo, Editora Abril, entre outros. De outro, investia na esfera teatral (Serviço Nacional de Teatro), cinematográfica (Empresa Brasileira de Filmes), do livro didático (Instituto Nacional do Livro), das artes e do folclore (Fundação Nacional de Arte). Entretanto, essa política cultural não se faz sem dissensões, podendo haver conflitos entre as empresas privadas e o Estado autoritário, como, por exemplo, o caso da censura no Congresso Nacional da Indústria Cinematográfica (1972) e o pronunciamento da Associação Carioca de Empresários Teatrais (1973) (ORTIZ, 1985: p. 87-89).
No processo de redemocratização no Brasil, a criação do Ministério da Cultura, em 1985, pelo governo de José Sarney, cujo ministro mais eminente foi o economista Celso Furtado, encontrou inúmeras dificuldades para a estruturação institucional do MinC, por conta da instabilidade política. Segundo Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, que foi chefe de Gabinete do Ministério da Cultura e titular do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) na gestão deste ministro, havia o “medo da tutela, o risco de monitoramento, o fantasma do intervencionismo” na pasta, após duas décadas de autoritarismo. “Em pouco tempo, Celso Furtado apresentava o projeto de lei para incentivar a produção cultural. Aprovada pelo Congresso, a Lei Sarney foi sancionada no dia 2 de julho de 1986” (SANTOS, s/d).
O governo subsequente de Fernando Collor efetuou um verdadeiro desmonte do aparelho cultural do Estado brasileiro, com a transformação do ministério em secretaria e a extinção de uma série de entidades da administração pública, atingindo duramente a área da cultura. Nesse governo a Lei Sarney foi substituída pela Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, conhecida como Lei Rouanet, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), cuja finalidade era “a captação de recursos financeiros para diversos setores culturais”. Segundo essa lei, “pessoas físicas ou jurídicas podem patrocinar um projeto cultural (com permissão de promoção e publicidade do incentivador), caso em que se permite a dedução de até 100% do valor do patrocínio, sempre respeitados os limites do imposto devido ao incentivador” (CERQUEIRA, 2018).
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), incentivou-se o paradigma gerencial empresarial aplicado à administração pública, estabelecendo “uma série de iniciativas privadas na área da cultura, ao mesmo tempo em que retirou o Estado do cenário decisório e da condução política do processo” (CERQUEIRA, 2018).
Uma ruptura ocorreu nos governos progressistas de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) com relação à política cultural existente desde a redemocratização, quando se estabeleceu uma proposta de descolonização cultural, com a valorização de um movimento de des-ocidentalização e de valorização da diversidade cultural. Essa experiência mostrou que é possível ter um papel ativo do Estado em diálogo com a sociedade para formular, estruturar e executar essa política setorial, por meio de um Sistema Nacional de Cultura (SNC), do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) e do Programa de Desenvolvimento Econômica da Cultura (PRODEC). Para Laymert Garcia dos Santos, a gestão de Gilberto Gil (2003-2008) propôs que o Ministério da Cultura superasse a visão elitista até então vigente de uma cultura superior, ornamental e de uma cultura de massa, pautada na lógica da indústria cultural, pensando a cultura como “usina de símbolos de um povo” (SANTOS, 2019).
A modificação mais importante no âmbito da política cultural ao longo dos governos progressistas foi que o MinC mobilizou “as forças culturais existentes no país, em vez de continuar como mero repassador de verbas públicas para o setor privado, no velho esquema clientelista”. Articulado à política externa, esse ministério investiu na “elaboração e execução de uma política cultural como parte de um projeto geral de construção do Brasil contemporâneo”, de uma nação “que afirma a sua presença no mundo globalizado por meio de uma diferença específica, de seus potenciais, de seus recursos e de sua visão de futuro” (SANTOS, 2019).
Talvez o programa de Pontos de Cultura tenha sido a mais original criação dessa política, que proporcionou a democratização cultural em todos os rincões do Brasil, “abrindo para 8 milhões de pessoas oportunidades de acesso à produção e à fruição de bens culturais” (SANTOS, 2019).
O desmonte dessa política federal de cultura, marcada pela presença de instâncias participativas da sociedade civil no Estado, tem sido a tônica dos governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019). Conforme asseverou Alexandre Barbalho, o discurso governamental de ambos é marcado por um suposto aparelhamento do Ministério da Cultura por parte do Partido dos Trabalhadores (PT). Foi com base nesse argumento que o primeiro tentou extingui-lo, medida revertida pelo movimento Ocupa MinC, mas que se concretizou com a assunção do segundo à presidência da República (BARBALHO, 2018: p. 248).
Pontos em comum a estes governos pós-golpe são o suposto “desaparelhamento” do MinC, com precarização do quadro de pessoal e o corte de verbas dentro de uma política de Estado mínimo, com significativa redução de investimentos, e a aniquilação daquela estratégia pós-colonial elaborada por setores mais conservadores da sociedade brasileira, em que a violência física cotidiana contra o Outro, a diferença, como índios, negros, LGBTs e outros setores marginalizados, se associa à violência simbólica contra a diversidade cultural com censura às artes e até mesmo aos livros didáticos (SANTOS, 2019).
Avesso ao pensamento crítico, à ciência e à cultura, o governo de Jair Bolsonaro transferiu a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania para o do Turismo e nomeou o dramaturgo Roberto Alvim (nome artístico de Roberto Rego Pinheiro) para o cargo de Secretário Especial da Cultura. O nomeado tem investido na “guerra cultural” conservadora contra a esquerda, inclusive ofendendo em redes sociais a atriz Fernanda Montenegro, chamando-a de “sórdida” após ela posar fantasiada de bruxa e ser queimada com livros para a revista Quatro Cinco Um, na edição de outubro de 2019. Como apontou Maurício Tuffani (2019), a investida “que levou Cultura para o Turismo é a mesma que ameaça a ciência” e a educação pública, cujo plano “é desenraizar completamente a área da Cultura para submetê-la com eficácia às diretrizes da ala ideológica do governo”. Agora a gestão da cultura no Brasil está a cargo do ministro Marcelo Álvaro Antônio, acusado de envolvimento com candidaturas laranjas do PSL.
Nesse momento tão difícil para a cultura e a arte no Brasil, em que a censura se associa à lógica neoliberal, talvez voltarmos à reflexão para o último dos intérpretes do Brasil, o economista Celso Furtado, contribua para não perdermos a esperança de que é possível construir uma nação que valorize a diversidade cultural e os conhecimentos tradicionais como crítica e condição de “superação do modelo de desenvolvimento imposto de fora para dentro” (SANTOS, 2019), pois, como ele afirmou, “em nossa época de intensa comercialização de todas as dimensões da vida social, o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade” (Apud ALAMBERT, 2012).
BIBLIOGRAFIA
ALAMBERT, Francisco. O último intérprete do Brasil. Cult. N. 72, setembro de 2012. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/o-ultimo-interprete-do-brasil-2/. Acesso em 13 de novembro de 2019.
BARBALHO, Alexandre. Política cultural em tempo de crise: o Ministério da Cultura no governo Temer. Revista de Políticas Públicas. V. 22, n. 1 (2018). Disponível em http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/9230. Acesso em 27 de outubro de 2019.
CERQUEIRA, Amanda P. Coutinho de. Política Cultural e “Crise” no Governo Temer. Revista Novos Rumos. V. 55, n. 1 (2018). Disponível em http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/8548. Acesso em 27 de outubro de 2019.
NAPOLITANO, Marcos. História do Brasil república: da queda da Monarquia ao fim do Estado Novo. São Paulo: Contexto, 2016.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 3a. edição. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SANTOS, Ângelo Oswaldo de Araújo. Celso Furtado, ministro da cultura. Dsiponível em https://celsofurtado.phl-net.com.br/artigos_scf/Angelo_Oswaldo_Araujo.pdf. Acesso em 13 de novembro de 2019.
SANTOS, Laymert Garcia dos. Perspectivas pós-coloniais do Sul Global – O caso do Brasil. A Terra é Redonda. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/perspectivas-pos-coloniais-do-sul-global-o-caso-do-brasil/. Acesso em 27 de outubro de 2019.
TUFFANI, Maurício. Investida que levou Cultura para o Turismo é a mesma que ameaça a Ciência. Direto da Ciência: Análise, Opinião e Jornalismo Investigativo. 7/11/2019. Disponível em http://www.diretodaciencia.com/2019/11/07/investida-que-levou-cultura-para-o-turismo-e-a-mesma-que-ameaca-a-ciencia/. Acesso em 8 de novembro de 2019.
* Texto produzido para intervenção na Roda de Conversa Observatório da Democracia no Salão de Literatura João Augusto dentro das atividades do 36º Festival de Arte de São Cristóvão (14 de novembro de 2019).
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